sábado, 19 de março de 2011
A história de João Filismundo !!!
A história de João Filismundo !
Capítulo I
João Filismundo mora numa casa muito simples, parte de tijolo, parte de pau a pique. Coberta de sapé, a casa tem apenas dois cômodos. Um quarto que faz a vez de sala de visitas e a cozinha com um fogão à lenha.Na parede, as prateleiras estão cheias de latas de querosene muito limpas, onde guarda os mantimentos.
João Filismundo mora em Alagoa, Sul de Minas Gerais, cidade pequena, com aproximadamente quatro mil habitantes, encravada nas montanhas , da Serra da Mantiqueira. Alagoa tem uma rua principal e mais duas paralelas. Uma do lado de cima, conhecida por Rua de Cima, a outra, lado de baixo, chamada Rua de Baixo, como também os partidos políticos, o de Cima e o de Baixo. Na rua principal tem a igreja e a prefeitura. Em cima desta, o hospital. Ao lado da igreja tem a casa do padre e o salão paroquial. Seguindo na direção da entrada da cidade e saída, existem estabelecimentos comerciais, bares, uma loja de armarinhos, do Sr. Juquinha, tradicional na cidade. Época boa, não existia inflação, as pessoas compravam pra pagar um ano depois. Prosseguindo na rua principal, antes do sobrado, que pertenceu ao Cel. Porfírio Mendes Pinto, um obelisco.
Em frente à igreja, do outro lado do vale, no alto do morro, como em todo o território mineiro, havia um “ cruzeiro”.
João Filismundo tem vinte um anos e já é casado. Casou-se há dois anos e pouco, com uma jovem dali mesmo, da região, apenas dois meses mais nova, que ele. João é funcionário da prefeitura, limpa as ruas, faz também, por amor e contrição, a faxina diária da igreja, é um católico fervoroso. Sua mulher está grávida, próximo das dores do parto, no último mês.
Na torre da igreja, o relógio bate as duas badaladas da tarde. João está quase no fim da limpeza na rua de cima. De onde está, com seu carrinho de gari, ele vê sua mulher ser carregada às pressas, por duas beatas da casa paroquial, onde trabalha como cozinheira, para o hospital. Ele pega a vassoura e a pá, joga dentro do carrinho, e desce a rua numa pressa danada, num misto de alegria e preocupação. Afinal seu filho ou filha, está para nascer. Depois de deixar o carrinho nos fundos da prefeitura, João sobe as escadas correndo e pára diante da enfermeira.
- E a Conceição?
- O doutor está com ela agora, fique calmo , que tudo há de se arranjar.
A voz daquela enfermeira soou diferente aos ouvidos de João Filismundo, pois ele a conhecia muito bem, pareceu uma voz carregada, não era o mesmo tipo de voz. De imediato ele pressente algum problema. Alguma coisa estava acontecendo.
Ali, com a enfermeira, João ouve um grito e gemidos angustiados, era sim, sua Conceição. Chapéu na mão, olhos pregados no chão, ele perde as forças e não consegue perguntar o quê que há.
- Olha, João, com algumas mulheres o parto é fácil, a criança sai do ventre como caroço de abacate. Já com outras não é assim, a criança não nasce sozinha, precisa de ajuda para sair, estes gemidos que você está ouvindo, da Conceição, é normal...nestes casos a mãe sofre um pouco mais.
João Filismundo ergue seus olhos negros arregalados, o suor brota na testa. Conceição está sofrendo muito? ...e a criança?
O relógio da igreja bate 3 horas.
O tempo vai passando, ninguém diz nada com nada, pararam os gemidos da Conceição, e não ouviu nenhum choro de criança. Aquele silêncio mortal corrói sua alma, pra onde foi a enfermeira?
João ouve as batidas do relógio, anunciando a hora da Ave-Maria, 18 horas. Em pé, sozinho no corredor, João põe a mão sobre os olhos e reza. De vez em quando, no meio da oração ele pára para conferir o silêncio. Nenhum grito naquele hospital, nenhum choro de criança. A agonia aumenta e só tem remédio na oração.
As 19 horas, João desce as escadas com o coração apertado. A prefeitura está fechada, a igreja também. Diante de uma e de outra, as pessoas se reúnem ali, em frente à prefeitura, e conversam amenidades. Toda santa tarde, acontecia aquele encontro. Uns sentam nos degraus da sede da prefeitura, outros sentam sobre os joelhos encostados na parede. Além da mentira , Deus do Céu, como aqueles homens mentiam sentados ali, é uma espécie de vício, como jogo ou a bebida. Se não mentissem qual a graça? ...pensavam eles ou não pensavam...faziam intuitivamente. Pois bem, além disso politicavam, muitas vezes João Filismundo ouviu dizerem que quem é comunista come criancinhas. Outro fato interessante, em vésperas da política municipal, disputa para prefeito, os partidários do partido de cima sentavam no outro lado da rua, chamado à época de paredão, não se misturavam com os do partido de baixo. João passa por eles pensativo e segue adiante.
João chega à sua casinha, entra e fecha a porta. Ali mesmo, no meio da cozinha , ajoelha e chora. Mãos cruzadas sobre o peito, como um romeiro aos pés da santa, ele fala em voz alta:
- Meu Pai Celestial, se o Senhor salvar minha Conceição e minha criança, por tudo quanto é mais sagrado debaixo do Céu, eu lhe prometo que se ela for menina-mulher, será devota de Nossa Senhora e quando ficar mulher formada vai dedicar sua vida para glorificar seu nome, vai ser uma freira para o resto da sua vida. Se for menino-homem, também lhe prometo que será um padre, para levar sua palavra em todos os lugares, para a alegria de Nosso senhor Jesus cristo. Seja feita a vossa vontade, meu Pai ! ...e não a minha, como a fumaça sobe em direção ao Céu, humildemente imploro que minha súplica chegue até Vós!
Lentamente João se levanta e enxuga cuidadosamente as lágrimas. Alguma coisa, um instinto, lhe diz que deve voltar ao hospital. Está tudo acertado entre ele e Deus.
A promessa foi aceita, Conceição quase morreu, agora está a salvo e a criança também.
Capítulo II
João Filismundo completou vinte e oito anos, por coincidência, seu filho, João Batista , hoje , com sete anos, fazem aniversário no mesmo dia. João Batista será filho único, pois o parto arruinou com a saúde de Conceição, mesmo assim, João é um pai muito feliz.
Nessa manhã, enquanto Conceição está varrendo o chão, João lhe fala da promessa. Ela aceita, embora no íntimo, junto com a alegria de saber o quanto seu marido queria que ela sobrevivesse, sente a tristeza da possibilidade de se ver apartada do único filho, ainda tão pequeno.
No mesmo dia, depois de fazer a limpeza diária na igreja, João bate à porta dos fundos da casa paroquial. Um homem alto, moreno, dentro de uma batina preta e surrada, aparece pelo vão da porta. Com um rosto austero, cheio de espinhas, abre-se numa expressão benevolente.
- Entre, João. Vamos entrando !
João Filismundo ajoelha-se para o beija-mão, os lábios toca o frio ouro do anel da ordem.
Orgulhoso como sempre, com o exagero respeitoso, todos ou quase todos os fiéis procediam daquela forma, o padre finge arrumar os círios, sempre acesos diante da imagem do Sagrado Coração.
- Foi bom você ter vindo, João. Taí o mês de junho, e temos que preparar os festejos e comemorações de Nhá Chica – (Nhá Chica é uma beata que viveu no século 19, na cidade de Baependi, também aqui no Sul de Minas, toda a sua vida foi dedicada a cuidar de pessoas pobres, humildes,e doentes, as autoridades Eclesiásticas do Brasil, vem juntando documentos sobre Ela, sobre seus possíveis milagres, para tentar sua Beatificação. Em Alagoa, foi construída uma pequena capela em sua homenagem, por um dos devotos, chamado Mizael Mendes). Continuou o padre:
- Como eu sei, João, que sempre posso contar com você, queria combinar uns servicinhos extras, aqui e lá na Capela da Nhá Chica. Trocar as flores, lavar em volta, limpar muito bem o altar, e ajudar o pessoal responsável pela fogueira...
Enquanto fala, o Padre serve duas canecas de café, uma para si e outra para o João, que permanece sentado, inquieto, com o chapéu entre as pernas, sem tocar no café. O Padre percebe alguma coisa de diferente nele, e pergunta:
- João?
- Sim, Sr...
- Tá me parecendo, homem de Deus, que você está preocupado? Nunca te vi assim!
- Tô sim Sr...
- Pois fale, homem!
De olhos baixos, João percebe o buraco grande no sapato, por onde escapa livre o dedão esquerdo, instintivamente encolhe o pé inteiro dentro daquele sapato velho.
- Fale, João, está doente?
- Não, não, Santo Padre, estou de boa saúde, graças a Deus, o caso é que...
- É o quê, homem?
João desenrola sua história, suas angústias. Para não levantar os olhos, fica reparando nas frestas do assoalho, que sua Conceição encera toda semana. João Filismundo, dentro de sua visão pessoal, acha muita desfeita encarar o Padre de igual para igual, segundo ele, um Padre é mensageiro de Deus, portanto merece todo respeito, achava ainda que poderia mesmo até ser pecado, sabe-se lá? Fosse como fosse, João vai falando, certo de que o Santo Padre há de encontrar um jeito de ajudá-lo a acertar as suas contas com Deus.
- E o quê você quer que eu faça, João?
- Que o Sr. dentro da sua sabedoria e piedade, e como representante de Deus aqui na terra, me ajude a mandar meu menino para o Seminário. Dona Custódia me disse , que este ano eles estão aceitando, pois é o ano das vocações sacerdotais, tá escrito aqui.Ela é que disse, porque eu mesmo não posso saber, não recebi a graça de ser ensinado a ler.
O Padre pensou um pouco, tomou mais um gole de café e falou:
- Mas isso custa dinheiro, João, e você não tem condições, despesas com a viagem, enxoval e outras coisas mais....
- Eu já imaginava, Santo Padre, e por causa disso mesmo, economizei durante todos estes anos. Desde o nascimento do João Batista, metade do meu salário da prefeitura vai para o colchão. E , também a Conceição me ajuda, além de trabalhar aqui na casa paroquial ela lava roupa pra fora.
Enquanto fala, João vira e revira o velho chapéu feito de palha, esperando a palavra final do seu líder espiritual.
- Quantos anos tem o menino, João?
- Ontem fez sete anos, Santo Padre, já está ficando mocinho...
O Padre dá uma gargalhada. Do seu lado, João fica na expectativa.
- Agora é impossível, estamos no meio do ano. Estas coisas, a gente acerta em janeiro, inicio de ano, João!
João se levanta, cheio de esperança, como se um peso saísse de seus ombros. Ajoelha-se, prega os lábios naquele anel, e pensa: Bendito seja o Santo Padre. Na rua, coloca o chapéu com alegria, e canta um dos tantos hinos que sabe, de louvor.
A procissão seguia, com a banda tocando sob a regência do Sr. Juca Quirino, Sr. Manso, Juvenal e muitos outros. Fazia muito frio àquela hora, por volta das 19 horas. João e Conceição, esta calçada de um simples chinelo de dedo, e uma vela acesa segura na mão esquerda, ambos cantavam, de vez em quando João olhava para trás vendo sua esposa,com o filho ao seu lado.
A banda enfeitava a procissão com àquela música. As pessoas cheias de fé seguiam, muitas delas descalças, mas em seus olhos sentiam a esperança. Ouvia-se lá longe, a música cantada por aquele povo devoto: “ A nós desceis, divina cruz, a nós desceis divina cruz, no céu no céu, com minha mãe estarei...no céu... no céu, com minha mãe estarei”.
Capítulo III
É janeiro, época de muita chuva. Os rios transbordam, as chuvas aqui, nesta região de Minas, começam normalmente em outubro e vão até fevereiro. Estiagem só a partir de março.
João Filismundo entrou num conflito, internamente , muito grande. De joelhos, no fundo da sua casa, perto de um pé de limão, orava sem parar. Ficou de joelhos por mais de 3 horas , sem dizer uma palavra sequer, prestou atenção sua esposa. Conceição foi até lá, ajoelhou ao lado dele, fez suas orações, após terminá-las disse:
- Vamos entrar, João!
Conceição começou arrumar a mala do filho. Dobra mansamente cada uma das poucas peças de roupa. Três calças, quatro camisas, três pares de meia e um par de sapatos. Olha o marido numa súplica muda, quem sabe poderia adiar a partida? Olha o filho, torna a olhar o marido.
Os dois João saem de casa debaixo de uma chuva fina, no escuro do dia que vai nascendo preguiçosamente. Vão caminhar quarenta quilômetros até Aiuruoca, cidade mais próxima de Alagoa. Os relâmpagos cruzam o céu, João acredita que o tempo vá melhorar. Seus pés amassam o barro, a chuva aperta. O pai resolve buscar abrigo debaixo de uma árvore.
O dia custa clarear. O menino fica apavorado, seu pai resolve prosseguir, carregando o filho no braço esquerdo, enquanto que com o direito segurava a mala. Com as mãozinhas cruzadas em torno do pescoço do pai, sua cabeça era protegida por um chapeuzinho, logo dormiu sob a chuva fina.
Movido por uma fé inabalável, uma fé difícil de explicar, João Filismundo caminha sem parar, carregando agora, sobre os ombros, seu filho, que um dia vai ser padre. Do embornal, tira pedaços de pão já velhos, que mastiga pra enganar o estômago.
De tardezinha a chuva piora e muito. João pára debaixo daquela àrvore. Acomoda da melhor forma possível o filho. Tenta acender o fogo para esquentar a marmita, porém, o vento está muito forte, acabam comendo a comida fria. O trovão ruge como um leão enfurecido, o vento como um coiote endemoniado. João Batista treme de frio e medo. Seus pés estão sujos de barro, a camisinha de manga curta ensopada. O pai olha o filho, procurando uma solução, talvez seria melhor pegar na mala outra camisa, seca? ...pensa um pouco e chega a conclusão: a roupa é pouca, pode fazer falta no seminário. O menino agarra-se ao peito molhado do pai e chora até adormecer.
As estradas vão sendo conquistadas, pouco a pouco, a falta de alimento e o frio faz com que o menino durma a maior parte do tempo. João Filismundo também está enfraquecido, mas tudo suporta para não incomodar o sono do filho, este de vez em quando dá uma tosse de leve. No final de mais um dia, João procura um lugar ou àrvore que seja, para descansarem.
A tosse do menino agora é convulsa , num dos acessos ele vomita. O pai, com o maior cuidado e carinho, estende o filho na relva molhada, examinando-o com olhos assustados. Beija-lhe a testa e sente uma quentura diferente, a testa parecia que havia sido aquecida por fogo. João Filismundo percebeu que alguma coisa estava errada com seu filho, um pânico momentâneo invadiu-o. Colocou o ouvido no coração e sentiu uma respiração ofegante. Pensava ele: João Batista não pode ficar doente, de jeito nenhum, não antes de cumprir o trato com Deus.
João Filismundo passa um pedaço de pano molhado no rosto do menino, àquela quentura em seu rosto parece que abaixou. Enrola um plástico em volta de seu pequenino corpo, apanha o bornal, acomoda a cabeça do filho no ombro esquerdo, com a mala na mão direita segue a caminhada por curvas e retas, naquela estrada, vencendo os morros debaixo do roncar dos trovões.
CIDADE DE BAEPENDI
Por volta das oito da noite, João Filismundo conclui uma parte da caminhada , chegando em Baependi . As primeiras luzes da cidade surgem no escuro. João alegra-se e canta baixinho, mas logo pára, assustado com a tosse do menino. Por um instante, João, ficou sem saber o que fazer, mas logo um vento de esperança bateu em seu rosto, e suas feições se acalmaram. Sim, somente um lugar poderia acolher ele e o filho, meu Deus, que falta de fé a minha, pensava. Pergunta onde é a casa paroquial, toma coragem e acaba batendo na porta. Não quer incomodar o padre, mas o assunto é de urgência, o filho está ficando doente. Insiste nas batidas, receoso, bate outra vez devagarinho, mas nada de aparecer alguém, vai insistindo, até que as batidas na porta foram ficando cada vez mais fortes. Um homem de pijama , rapidamente aparece no vão da porta que estava entre-aberta.
- O que deseja? Perguntou com um ar contrariado.
- Eu precisava falar com o padre!
- O quê? – aquele homem de pijama parecia meio surdo, logo após, colocou uma das mãos em volta do ouvido, para ouvir melhor-
- O quê?
- Eu preciso falar com o padre!
- Sou eu mesmo, pode falar!
João Filismundo leva um susto, nunca em sua vida tinha visto um padre sem batina, será que era mesmo padre?
- O Senhor?
- Isso mesmo, pode falar, seja rápido, por favor!
Rapidamente João inclina-se e ajoelha como pode, carregado como estava com a criança e a mala.
- Sua benção, Santo Padre, para mim e meu filho que está doente.
O padre fez uma cara de espanto, o que seria aquilo?
- Deus abençoe, mas o quer de mim a esta hora da noite? Se quer marcar alguma missa, a secretária atende todas as manhãs, aqui do lado, na secretaria.
- Eu queria apenas, Santo Padre, um abrigo para meu filho, só por esta noite, amanhã sigo viagem!
-T á pensando o quê, moço? Chega aqui nesta hora, e quer dormir na minha casa? Sinto muito... aqui não tenho acomodação para mais ninguém, procure em outro lugar!
- Em nome de tudo quanto é mais sagrado, Santo Padre, qualquer cantinho serve, é só para o menino, eu estou são de saúde, posso ficar aqui do lado de fora!
Àquela porta soa como um trovão quando é fechada, diante de seu nariz. João fica ali parado, repara na fachada da casa paroquial majestosa, completamente diferente de Alagoa, olhas as rosas no jardim...segura forte o filho, pega a mala, vira-se devagar e continua sua peregrinação pela cidade em busca de socorro para o filho doente.
Voltou a chover, agora uma chuva pesada com granitos, João Filismundo fica andando em círculos, as luzes da cidade com aquele temporal acende e apaga constantemente. Como em todos lugares, normalmente a igreja da cidade sobressai em relação à outras casas, João acaba por retornar à porta da Igreja que fica ao lado da casa paroquial. Sobe lentamente os degraus que dão acesso à porta principal, tenta abrir, está trancada. João entra em desespero, muda suas atitudes e comportamento que foi manso e calmo, ao longo da sua vida, até naquele momento. Começa a gritar.
- Esta casa é a casa de Deus, não pode ficar trancada...- começa a chorar ou um tipo de soluços, não deu pra distinguir. Suas costas deslizam contra a madeira envernizada, as pernas se rendem ao cansaço. A chuva formava um redemoinho devido ao vento muito forte, João enxugava seus olhos a todo momento para poder ajeitar o menino em seu colo. Abre a mala, admite que o menino precisa de roupas secas.
O dia clareia devagar e ainda chuvoso. João Filismundo se levanta com o filho ao colo. No rosto de João seu aspecto é o de alguém que acabou de tomar uma grande decisão.
João caminha por um corredor cheio de portas trazendo ao colo o filho desacordado. Na sua frente caminha uma enfermeira, ela abre uma porta , e pede que João estenda o corpo do filho numa maca. Dois vultos de branco se debruçam sobre o menino. A enfermeira puxa João pelo braço para fora do quarto. O pai reluta, mas acaba saindo.
Num pequeno escritório, ele vai fornecendo os dados para uma atendente que preenche uma série interminável de papéis. Ao final, é informado que o menino precisa de tratamento e vai ficar internado.
- O Sr. queira, por favor, fazer um depósito neste valor?
João Filismundo demora a entender que será obrigado a pagar pelo tratamento do seu filho. Quando se dá conta disso, abre a pequena mala, remexe entre as roupas até encontrar um pequeno maço de notas dobradinhas, dentro de um pequeno saco plástico. Com as mãos trêmulas , ele entrega todo o dinheiro a atendente. Ela abre o pacote e começa a contar, nota por nota...
Capítulo IV
Com os olhos fixos, João Filismundo se transporta em pensamento para o dia de seu último aniversário, quando procurou o padre e lhe pediu ajuda para o cumprimento da sua promessa. Neste dia, ele entregara ao Padre um pacote de dinheiro. Sete anos de sacrifícios em pequenas e grandes coisas, o suficiente para as despesas com a viagem de João Batista, marcada para o começo de Janeiro.
Em dezembro, depois da missa do galo, João reuniu coragem e perguntou ao Padre a data certa da viagem. O Padre deu um sorriso contrariado, e sem paciência foi logo falando:
- João, tira esta maluquice da sua cabeça , homem, onde já se viu uma idéia desta. Olha, esta promessa que você fez, não passa de uma bobagem...quem pôs na sua cabeça uma loucura dessa?
- Mas Santo Padre?
- Deixa eu falar...Deus está contente com você, não se preocupe. Inclusive, o dinheiro que você deixou guardado comigo, eu usei para fazer caridade, Deus quer que façamos caridade, e pode ter certeza do que estou te falando e ordenando, Deus não quer que João Batista seja Padre, mas sim que fique aqui junto de nós...e daqui algum tempo ele já pode ser coroinha e ajudar na limpeza da igreja. Agora vá embora!
- Perdoa se cometo pecado contra o Sr. Santo Padre, isso não pode ser...João Batista é filho da minha promessa. Minha Conceição só está viva porque eu empenhei minha palavra...Ah, Santo Padre, eu não posso falhar com Deus, se isso acontecer, ele não vai me perdoar.
João ajoelhou-se em sua frente com a cabeça baixa, o Padre num acesso de fúria, começou a esbofetear as faces de João, não sei quantas vezes, até sentir cansado com uma respiração ofegante. No canto da boca de João saiu um risco de sangue. Este continuava de cabeça baixa.
- Se você, João, me desobedecer, rogarei uma praga em você, que sua carne vai derreter igual a um nazareno.
- Me perdoe de novo, Santo Padre, minha vida não vale nada comparada a promessa que fiz com Deus. Minha vida é mais insignificante que um grão de areia. Trato é trato, foi dado minha palavra, se minha carne cair após eu cumprir meu trato com Deus, vou cantar hino de louvor pra Ele, se eu virar mesmo um Nazareno como o senhor disse que vou virar, mas se meu filho for para o seminário, eu só tenho que agradecer.
João continuava na mesma posição com a cabeça baixa. As feições do Padre pareciam completamente fora do normal. No chão, escorria o sangue que caia abundante da boca daquele fiel.
No dia seguinte ,João foi falar com o Prefeito. Este já sabia de tudo, nos mínimos detalhes, foi àspero com João.
- Você ficou desmiolado, João? Brigar e bater no Padre?
- Não senhor, eu não briguei com ele e nem bati, que estas mãos minhas fique toda seca, se cometi este pecado.
- De hoje em diante, nem a passeio volte aqui na Prefeitura, está despedido, saia daqui e agora, suma da minha frente.
Suas lembranças foram cortadas pela àquela voz:
- Ainda não é suficiente o dinheiro, seu João!
- É tudo o que tenho...
A atendende endurece o olhar, pega o pequeno monte de notas e diz:
- Espere um momento, e some por uma porta ao fundo da pequena sala.Dali a pouco ela retorna com o rosto mais aliviado e começa a falar:
- Vamos fazer o seguinte. Aqui na sua ficha diz que o senhor foi funcionário da limpeza em Alagoa. Nós cuidamos do menino e o senhor faz alguns serviços de limpeza para nós. Qual a sua opinião? O senhor concorda?
- Sim senhora...
- Para começar, procure o Manoel lá no pátio do hospital , pegue as ferramentas e faça uma boa limpeza naquele pátio.
Enquanto João Batista se restabelece, seu pai trabalha. Sem ter o que comer e onde dormir, perambula pela cidade ou se encosta num canto qualquer, esperando as horas passarem. Uma madrugada, deixa-se ficar imóvel, por muitas horas, chapéu na mão, diante da igreja. Um carro pára bruscamente, quatro homens descem e caminham em sua direção.
- Que é quê você está fazendo, parado aqui à esta hora? Mostre seus documentos...
João interrompe suas reflexões, tenta abrir a mala, rápidos como gaviões os homens arrancam a mala de sua mão, abrem-na, remexem nas roupas do menino, pegam a carteirinha de plástico vagabunda onde João guarda a carteira de trabalho. Um dos homens examina minuciosamente aquele documento e faz sinal de negativo com a cabeça. Outro deu-lhe um chute tão forte, que João rodou escadas abaixo. Posto na viatura, ele é levado para a delegacia.
- Estes homens são os demônios em forma de gente...
João urinou na calça dentro da viatura, pois a violência do chute, em cima do umbigo, fora de uma brutalidade tamanha, que ele estava com dificuldade de respirar. Sua urina molhou o banco que molhou parte da calça da farda de um policial. Em frente à delegacia, pegaram João pelos cabelos, esfregaram seu rosto naquele banco molhado.
- Você fez sujeira, agora limpa, ordenava um dos policiais.
João Filismundo é conduzido pelo corredor para dentro de uma cela. O interrogatório é mais uma chuva de ofensas do que propriamente perguntas. Entre aqueles puxões de cabelos, socos e pontapés, João tem dificuldade de falar, gaguejando diz que está levando seu filho para o seminário.
- Onde você coloca as bicicletas que rouba? As queixas de roubo descrevem um elemento parecido com você, sua besta, onde estão estas bicicletas?
João nega, quanto mais nega, mais apanha. Ele leva sua mão no pequeno crucifixo que traz pendurado ao peito, num colar de barbante. Todos saem da cela, ele fica ali sozinho, por mais de meia hora. Entra outro policial e diz:
- Meu amigo, falou mansamente, não vou deixar eles baterem mais em você- João o olha com uma chama de esperança, seria o seu salvador?- Mas é preciso que você me diga, onde escondeu as bicicletas ou se vendeu e pra quem vendeu, pode confiar em mim. Ninguém vai te machucar mais.
João permanecia mudo. Que bicicletas , pensava? Fez-se um silêncio, o policial esperava uma resposta satisfatória.
- Se quiser, vamos só nós dois, no esconderijo onde estão as bicicletas. Vamos? Já te disse, tem a minha garantia, ninguém vai mais te bater, e olha que eles querem, viu?
João Filismundo olhava aquele homem, pedindo-lhe pra ir num lugar com ele, que não sabia qual, dizendo a palavra esconderijo. Abaixou a cabeça e assim ficou.
- É , meu amigo, não tem jeito mesmo – o tom de voz daquele policial era macio, ardiloso, mandou abrir a porta da cela e desapareceu.
Em seguida, veio outro, com uma mangueira, e lá do corredor molhava João, a pressão da água era muito forte, num determinado momento ele ficou de costas, pois seus olhos foram machucados, o policial ria, vieram outros, e fizeram um coro com uma risada infernal.Lá dentro da cela, àquela figura desamparada, encolhida no canto , teimava em segurar o pequeno crucifixo.
Passaram-se algumas horas. João Filismundo desmaiou, perdeu a noção do tempo. Sentiu outra vez, àquela água caindo em seu rosto, desta vez virada de dentro de uma lata. Viu aquele vulto monstruoso, ficou com medo. Olhos semi abertos, percebeu que aquele homem, encaixou em sua mão , cuidadosamente,um ferro brilhante cheios de pontas- soco inglês-
O carro pára num lugar escuro. A porta se abre e lança João Filismundo e sua pequena mala ao mundo dos vivos. Todo machucado e trêmulo, arruma forças para juntar as peças de roupa caídas na rua e as recoloca dentro da mala. Volta a desmaiar novamente.
Capítulo V
Na luz difusa do dia que nasce, um vulto se aproxima da entrada do hospital. Os passos são vacilantes. O vulto se acomoda como pode, junto à porta ainda fechada. Ele se encolhe, pois sente muito frio, oculta o rosto entre as pernas abraçando a pequena mala.
A porta se abre. O vulto se levanta e entra no hospital, mas é barrado na porta principal. Levam-no por outra entrada, as pessoas com quem ele cruza parecem estar vendo um fantasma. Passa em frente a um espelho onde está impressa uma propaganda que diz: Campanha da Fraternidade. Ao olhar no espelho e ver seu aspecto entra em choque. Pára e fica olhando aquele que um dia sorria feliz ao lado da sua Conceição e do filho. Seus olhos transmitem uma dor profunda ao ver seus cabelos desgrenhados, lábios partidos, um enorme hematoma que impede que o olho esquerdo se abra, sangue pisado na barba já crescida, camisa rasgada e manchada de sangue....Desde aquele dia, João Filismundo nunca mais voltou a enxergar do olho esquerdo. Ele se assusta e ameaça correr, mas cai, está muito fraco. Os enfermeiros o ajudam levantar e seguram seus braços. Ele ficou assustado com sua imagem. Levaram-no para o ambulatório, fizeram curativos. Os enfermeiros, agora com ajuda de uma enfermeira, passam um pano molhado em seu corpo. Limpam-no com muito carinho, colocam um tampão de algodão, molhado com água boricada em seu olho. Quanto a roupa, os enfermeiros entreolharam entre si, um deles disse:
- Esta roupa está com mau cheiro! – procuraram a enfermeira chefe, e logo retornaram com uma muda de roupa, surrada, porém limpinha.
João pára diante do leito de seu filho adormecido. Têm poucos minutos pra ficar ali. Passa sua mão machucada no cabelo do filho. Fica olhando aquele corpinho de anjo, lembra da Conceição, lembra do trato com Deus, repousa seu olhar iluminado no filho, os lábios se mexem soletrando: João Batista. Neste instante o filho acorda, um pouco dopado, olha seu pai, estende sua mãozinha, e volta a cair no sono. Uma enfermeira jovem se aproxima deles, e pede gentilmente ao pai para retirar-se.
João caminha alheio pelos corredores do hospital, sua intenção, mesmo naquele estado precário fisicamente, é ir até o pátio dos fundos, onde cumpre sua rotina diária de faxina. No caminho , cruza com a senhora que o atendeu no primeiro dia. Ela se comove com o estado de João.
- Virgem Santíssima ! O que foi que houve com o senhor?
João permanece calado, mas seus olhos se enchem de lágrimas. Sente uma espécie de vergonha, abaixa a cabeça, ela percebe que ele segura o crucifixo.
- Seu João, há quantos dias o senhor não se alimenta?- ele fica quieto,mudo- O senhor me espere lá no pátio, eu não demoro, ouviu?
No pátio João inicia seu trabalho, mas não consegue, ainda continua trêmulo e muito fraco, aparenta olhos cansados, está pálido. A mulher aparece em seguida com uma marmita, é a comida que ela traz de casa todos os dias para o seu almoço.
- Coma, e guarde a marmita que eu venho buscar mais tarde. E não saia daqui para nada, pelo amor de Deus.
João comeu avidamente. Que bondade de mulher, pensava. Anoitece e João continua no pátio, agachado no escuro. A mulher surge com uma sacola e uma chave. Ela abre o cômodo destinado aos equipamentos de limpeza do hospital.
- Entre, e isto aqui é um cobertor. Preste bem atenção: Vou deixar esta porta destrancada todos os dias, para você vir dormir aqui.
João Filismundo pega sua mão e leva até seu peito em sinal de agradecimento. Seu olhar é cheio de ternura para com ela.
- É desconfortável, mas é melhor do que ficar na rua.
- A senhora é um anjo mandado por Deus.
- Não sou, não. Só não gosto de ver ninguém andando por aí, faminto e maltrapilho. Se acontece alguma coisa com o senhor o que vai ser do menino?
Passaram-se quase 60 dias. João Batista havia tido uma pneumonia muito forte, nos dois pulmões.
João Filismundo recuperou-se, embora tenha ficado cego, àquela bondosa senhora levou-o ao médico, foi em vão.
Finalmente, numa bela manhã de sol, João Filismundo deixa o hospital de mãos dadas com o filho. Muitos dos enfermeiros e enfermeiras foram despedir-se dele. Seu anjo da guarda, como dizia, andou uns poucos metros com eles, pediu a senhora:
- Seu João, lembre de mim em suas orações!
Ele parou . Olhou com um olhar perdido aparentemente, emocionou-se e disse:
- Nunca em minha vida, alguém pediu que eu fizesse uma oração assim como a senhora pediu.
Pegou a mala, segurou a mão do filho, e mancando duma perna seguiu viagem. Ela abanou a mão, e em seus olhos bondosos brotaram umas lágrimas.
Caminham até a tardinha, quando chegam a um posto de gasolina. João pede informação a um motorista de caminhão e acaba ganhando uma carona até a próxima etapa da sua longa jornada.
Apesar da cabine estar vazia, o caminhoneiro os coloca na carroceria. Eles se acomodam no meio da carga. Anoitece, a estrada está deserta, o motorista liga o rádio. A melodia é triste e melancólica. Na carroceria, pai e filho se abraçam apertado para combater a solidão e o frio.
Madrugada, o caminhão pára. Os dois descem num trevo, no meio do nada. Caminham mais um pouco até a entrada de acesso a um sítio muito bem cuidado. João sobe a estradinha, sua intenção é ficar até o dia clarear, num lugar seguro. Sempre lembrava dos policiais que o torturaram, entrava num verdadeiro pânico chegando a ter náuseas e calafrios. A porteira estava fechada com corrente. Chama:
- Ó de casa..ó de casa....- os cães latem, e correm em sua direção, ele se afasta e silencia.
Na estradinha, centenas de àrvores a ladeiam. João escolhe uma delas, de tronco grosso, senta-se. Ajeita o corpo para acomodar o do filho. Ambos adormecem.
João acorda com a voz do menino:
- Mãe....mãe....- o pai percebe que o filho está faminto. E agora?
João Filismundo levanta-se devagarinho para não acordar o filho. Fica pensando e pensando....Ajoelhado implora:
- Senhor meu Deus, dê o perdão para este homem pecador, mas preciso arrumar comida para meu filho.
Levanta-se e sobe a estradinha disposto a tudo. Dá a volta à cerca, arrastando-se até os fundos do terreno. Com cuidado, retira a estaca que sustenta o arame farpado e entra sorrateiro pelo capim alto. No escuro ouve o ruído abafado da respiração de uma criação de porcos. Volta rápido pelo mesmo caminho, e ao lado do filho adormecido abre a mala, pega uma pequena vasilha e some na escuridão. Entra no chiqueiro, vai procurando o cocho, passa a vasilha no fundo deste, até enchê-la todinha de ração misturada com soro de leite. Levanta a cabeça do filho e a coloca em seu braço, com as pontas dos dedos vai colocando àquela comida em sua boca...após terminar com muito esforço, estica seu corpo atormentado ao lado do filho adormecido, e balbucia algumas palavras:
- Eu não posso, meu Deus, deixar meu filho adoecer novamente, fiz o que fiz, para poder honrar meu trato com o Senhor, ele sentia fome, se pequei e tenho certeza que pequei ao pegar o que não é meu e sim do alheio, foi por causa do João Batista, peço meu Pai , sua misericórdia!
Capítulo VI
Despertaram suando com um sol quente e oblíquo, acabara a sombra sob a árvore e os obriga a caminhar estrada afora. Há uma brincadeira entre o sol e as nuvens, cada hora um se esconde e outro aparece, até que a chuva desaba sem aviso, fria que só.
Os pés de João Filismundo estão rachados, as rachaduras se transformam em feridas que incomodam. A tosse de João Batista retorna fraquinha. Ele anda inquieto, agitado, resmunga, pede colo. Quer a mãe, pergunta quando vão chegar em casa.
À tardinha chegam num pátio imenso de um restaurante. O menino pede água. Pela segunda vez, João Filismundo muda sua atitude, perde a timidez, e vai entrando no restaurante, intrépido em seus farrapos, cabeça erguida, como uma espécie de rei. Súbito uma interferência em sua trajetória.
- Vamos saindo....- um homem o empurra para fora- João vai retornando para o filho, leva um susto, de onde estava ele viu sua Conceição conversando com João Batista. Ficou parado olhando...
- Minha Conceição veio ao nosso encontro. Conceição? Gritou....Ela olhou com aquele ar cheio de carinho para seu marido.
- Conceição?- ela deu um sorriso de paz e benção. João via ela pegar o filho, beijar seu rosto, arrumar o cabelo. Saiu correndo, tropeçou, rolou no asfalto, e continuava gritando:
- Conceição....- foi chegando perto dela, eis que num piscar de olho ela sumiu, ele olhava para os lados, tinha certeza que vira Conceição com João Batista, tinha certeza...aproxima do filho sentadinho sobre a mala.
- Cadê sua mãe, João Batista?- o menino olhava seu pai sem nada entender, Ela estava aqui alisando seu cabelo.- Conceição? Gritou novamente. O menino começou a soluçar, Filismundo como numa espécie de transe volta à realidade, olha o filho com um ar desesperado.
Passam alguns minutos, de vez em quando o pai olha ao redor, como se estivesse procurando por alguém. Olha o filho, repara a magreza do menino, seus olhos fundos, sua palidez, a moleza da pele mal esticada sobre os ossos.Sentado no chão, ao lado do filho, a despeito da mansidão de sua fisionomia, exibe uma expressão animalesca espreitando a caça. Levanta-se de um salto e corre até as latas de lixo, afunda o braço e vai puxando para fora, papel higiênico, guarda napo, cascas de ovos, ossos de frango, bagaço de laranja...Como que entendendo e aceitando o gesto desesperado do pai, João Batista se planta ao lado dele, esperando. E come sem reclamar a mão cheia de comida que o pai coloca em sua boca.
Anoitece, um vento frio chega, a tosse volta a aparecer, desta vez mais forte, acompanhada de vômitos, João Batista está com os mesmos sintomas de antes, quando foi internado em Baependi.
João Filismundo olha as feridas em seus pés, mina uma água amarelada, misturada com sangue. Procura uma sombra para descansar. Ele adormece e sonha com a sua infância na casa dos tios beberrões. Sem pai ou mãe que lhe defenda, vira saco de pancadas de primos e vizinhos. Sempre quieto e acuado. No sonho estas imagens vão se misturando com a beleza das procissões e das velas, a paz e quietude da sacristia, a sensação de proteção no convívio com os padres e beatas, a emoção de ver Conceição pela primeira vez, linda como uma santa em seu uniforme de filha de Maria. Nas missas, um olhar sorrateiro entre eles, sem que ninguém perceba.
Os dois acordam com o intenso barulho e movimento da estrada. Põe-se de pé e continuam a andar. João tenta conseguir uma carona naquela estrada cheia de carros. Ao longo da caminhada, invade as plantações na beira da estrada, pés de banana, laranjas e outras frutas, pouco importando se ainda estava verde.
João Batista pede a todo momento para descansar, seu pai fica intranqüilo, tanto com a saúde do menino, como para chegar rápido ao destino, ao seminário onde seu filho um dia será padre. O menino vomita tudo que come ou bebe. Não tem mais forças para andar. O pai abre a malinha e tira de lá a velha camisa em farrapos, com ela improvisa uma espécie de mochila onde acomoda o filho.
Àquela estrada perdia de vista, eles iam seguindo. Lá um pouco adiante, João coloca a mão em cima do olho, está vendo sua Conceição. Sim...ele estaca ali, olha novamente forçando a vista e vê Conceição sorrindo, como ela sorria...os dois passaram a sorrir. João Filismundo apressa o passo, mesmo fraco como estava seus passos duplicaram. Conceição continua sorrindo...ele tenta correr mas não consegue, os pés não deixam, por mais que andasse nunca chegava perto da sua santinha.
- Conceição....
João Filismundo parou ofegante, perdeu as forças, seus pés doíam muito. Conceição pedia pra eles se aproximarem dando sinal com as mãos...João ficou desesperado....gritou...foi vendo sua Conceição desaparecer no meio do nada....ficou ali, por um bom tempo, até voltar a caminhar novamente com passos lentos.
Numa curva, encontram uma casa simples, muito próxima da estrada. Uma velhinha surge na janela e os observa com curiosidade. João pede um pouco de água. A velhinha some na escuridão da tapera e logo volta com uma caneca grande, feita de lata de conserva, cheia de água. João desamarra a tira que o prende ao filho, e lentamente, gota por gota vai colocando a água na boca do menino. Desta vez ele não vomita. Saciado, adormece mansamente.
Sol e chuva transformam as roupas deles em farrapos, suas peles em couros curtidos, seus olhos em vidros baços, os cabelos em novelos sem brilho. Os dois João são polichinelos ossudos, de grandes olhos parados e uma fome roncando nas entranhas. Passam por um grupo de romeiros que, curiosamente também se dirigem ao Santuário de Aparecida, vão num caminhão com uma lona em forma de toldo, estendida sob a carroceria e tábuas de madeira que serviam de bancos,que iam de um lado ao outro na beirada da tampa da carroceria. Parados no acostamento, se comportam como se estivessem numa festa. João fica a certa distância deles, na espreita. Quando partem, recolhe os restos da matula. Come, dá de comer ao filho e ainda guarda alguma coisa para mais tarde.
Às vezes João tenta colocar o filho de pé para que ele ande um pouco. O menino geme, com uma voz de cana rachada:
- No colo, pai...
João passa os dedos na barba, pensativo. Olha seus pés, sente uma sensação esquisita, não sente os pés tocando o chão, mesmo assim continua andando.
Capítulo VII
Conceição se ajoelha diante do confessionário.
- Padre , preciso de perdão, pequei e quero sua benção!
- Sim, minha filha, pode falar.
- Padre, por todos estes anos tenho carregado uma cruz muito pesada...
- Fale, minha filha, que cruz é esta que te aflige?
- As noites, os dias, doem em meu peito...muitas delas eu fiquei sem dormir, chorando lá quieta, meu marido acordava , fazia um chá de hortelã...
- Sim, Conceição, o que tem seu marido?
- Santo Padre, o remorso come minha alma pecadora!
Conceição ficou silenciosa, não ousava olhar o padre.
- Fale...estou aqui para ouvir sua confissão.
- Vou atrás do meu marido, a saudades está me matando, Santo Padre, e quando eu encontrar com ele, vou dizer que João Batista é filho de outro homem...
- E é assim que João deve continuar pensando , que o menino é filho dele, minha filha. Nós só temos que prestar contas disso à Deus...
- Mas....mas Padre, ele é meu marido, ele merece esta satisfação...
- Pense muito bem, minha filha, porque se você contar a ele, eu não terei outra saída a não ser amaldiçoar você, o seu marido e João Batista pelo mal que irão causar à mim e a todos os fiéis desta paróquia. Na verdade, esta decisão cabe a você decidir, por isto existe o livre arbítrio. Reze cinquenta Pai-Nossos e cinquenta Ave-Marias para que Deus a ilumine. Vá e não volte a pecar novamente.
Ajoelhada aos pés da Virgem Santíssima, Conceição tem o rosto banhado em lágrimas. Enquanto reza, vai relembrando tudo o que aconteceu naquele dia. Na calma silenciosa da casa paroquial, ela enxugava pratos cantarolando. De repente se sente observada, fica sem jeito. É o Padre, na soleira da porta, olhando de um modo diferente.
- Conceição, venha cá!
Ela larga o pano de prato sobre à mesa , e caminha rapidamente numa ansiedade prestativa. O Padre continua na soleira da porta e quando ela chega perto, segura seus ombros numa atitude de esquisita intimidade.
- Hoje estou precisando muito de você, minha filha.- enquanto fala ele a examina detalhadamente, da cabeça aos pés. Ela abaixa os olhos envergonhada.
O Padre passa a mão pelos seus ombros, numa atitude quase paternal e a conduz para o quarto.
Conceição soluça na Igreja, chamando atenção para si. Seu rosto continua banhado pelas lágrimas e remorso. Vai lembrando daquele homem, desabotoando a sua batina calmamente no inicio, logo depois quase a rasga de tanta pressa, e deita sobre ela como uma fera, na cama que ela mesma arrumava todos os dias.
A casinha de João Filismundo e Conceição está fechada como se lá não morasse mais ninguém.
Conceição não aparece no trabalho há quatro dias. O Padre estranha, manda um grupo de beatas ir até sua casa para saber se ela está doente.Elas se aproximam da casa, antes de baterem na porta, recuam. A casinha exala um forte cheiro de carniça. A pedido das beatas, os vizinhos arrombam a porta. Levam um susto. Conceição está estendida sobre o barro batido da cozinha.
O cortejo fúnebre se resume a quatro homens , que carregam o corpo dentro de um lençol branco encardido, com as extremidades dele amarado a um grosso bambu. Em alguns pontos o lençol mostra umas manchas escuras. Aqueles homens bondosos que carregam o corpo de Conceição, amarram um pano em cima do nariz, tamanho é o fedor que o corpo exala. Um deles larga o bambu, e se afasta para vomitar.
No cemitério, o corpo é rapidamente jogado na cova que já espera aberta. O Padre aparece, cobrindo o nariz com a ponta da estola de cetim negro. Com a mão direita joga míseras gotas de água benta na cova, a uma distância considerável. O coveiro termina o trabalho sem pressa, enquanto reza uma última Ave-Maria.
Capítulo VIII
A estrada agora é imensa, mais larga que um rio dos grandes, e cheia de tudo quanto é tipo de carros, ônibus, caminhões.
Por causa do calor insuportável, João acabou tirando a camisa. As calças em tiras, quase pelos joelhos. Cabelo e barba crescidos, o barbante no pescoço com o pequeno crucifixo sobre o peito, o alforje budunhento, a mala suja e amassada, e para completar, àquela mochila humana: um menino de aspecto doentio, cabeça grande, só pele e ossos.
Com muita dificuldade consegue que um frentista lhe ensine o rumo correto do Santuário.
Manhãzinha muito cedo, João segue lentamente, olhos postos no chão. Vai pensando, meditando, murmurando uma oração, ora murmura, também, palavras totalmente desconexas.
De repente o olhar se ergue, procurando o horizonte, ou quem sabe, o céu. João estanca os passos, numa imobilidade de crente. Na linha do horizonte, inteira e completa como uma visão, surge diante dele em seus pórticos e cúpulas, a Basílica de Nossa Senhora Aparecida Padroeira do Brasil. Emocionado, abraça o filho com força.
- Chegamos, João Batista, eu não disse? Olhe para isso! É aqui que você vai viver e crescer servindo à Deus, como eu prometi. Daqui, um dia, você irá levar a esperança para os desesperançados, irá visitar os pobres de espírito aqueles que não crêem em nosso Pai Celestial. Daqui, João Batista, seu destino será ajudar a dar paz para aqueles que vivem atormentados.
O menino pisca mansamente, seus olhos encovados, exageradamente brilhantes, olham para frente, mas fitam o vazio.
A cidade é uma Meca onde João Filismundo vagueia procurando pelo seminário. Nas ruas apinhadas de gente, surge se arrastando, lenta como uma cascavel, uma enorme procissão. Olhos marejados de lágrimas, muito contrito, ele toma seu lugar no final da longa fila. As pessoas se afastam dele, com repugnância.
Lentamente incorporado àquela caminhada santa, tendo diante de si, cada vez mais próxima a entrada do santuário. O coro das vozes, o cheiro de incenso, trazem de volta aquela sensação de segurança e de paz que sempre o aproximaram de Deus e da igreja. Tentando acompanhar o hino, ele sente que falta pouco, muito pouco para cumprir o que prometeu a Deus. Seu rosto exibe agora uma expressão estranha, espécie de vitória e alívio.
Quatro homens bem vestidos, de ternos, com uma identidade pendurada no paletó surgem do nada, e ordenam, em voz baixa, que João Batista se separe do grupo e se afaste dali. Ele se recusa a entender. Parado, no meio daquela escadaria, atrapalhando o fluxo da procissão, ele continua cantando. A voz é rouca, some da garganta, mas ele teima e continua a cantar.
Os homens, cada um deles segura num braço de João Batista, tirando-o para fora do fluxo da multidão que entra indiferente. Ele senta nos degraus. Ajoelha-se, abre os braços.
- Viva a Mãe de Deus e no...ossaaaa!
Preso ao corpo do pai pela tira de pano encardida pende o corpo inerte de João Batista, a cabeça e os bracinhos caídos, como um voto de cera.
- Sem pecado e concebida....- os homens teimam e fazem força para tirá-lo de lá.
- Viva a Virgem Imacula...adaaaa....
Eles pegaram João Batista e o levaram distante uns trinta metros, segurando-o fortemente pelos braços.
- Vá embora daqui....- mas João não queria ir. Ficou parado ali, de pé, fitando com dificuldade a entrada da Basílica.
João Filismundo vagueia sem rumo pelas ruas de Aparecida do Norte. Não repara nos olhares estranhos que suscita em seu caminho de andarilho. Com apenas um olho como visão, fica confuso, as pessoas somem e aparecem, ele esfrega o olho na tentativa de enxergar melhor, mas tudo está embaçado. É um vai e vém de estranhas criaturas.
João, aos tropeços vai andando, perdeu a noção, a fraqueza é tanta que não consegue colocar as idéias em ordem. Sabe que tem de perguntar alguma coisa que refere ao seu filho, mas esqueceu. Ouve alguém chamando, quase gritando ao seu lado:
- Moço! A criança, parece que está morta!
João Filismundo olhou em direção ao som daquele alerta. Ficou uns segundos meio perdido, viu um senhor dizendo bem alto:
- Moço, a criança morreu?
João cai em si. Desamarra a tira e estende o corpo de João Batista no meio da rua. Uma roda de curiosos se forma rapidamente ao redor dos dois. Ele olha àquela gente embaçada. Ouve um som misturado de vozes. Olha o filho.
- Acorda, João, acorda...
- Não adianta, moço, não viu que o menino está morto?
João se levanta devagarinho, com muita dificuldade, olha para a multidão. Olha para João Batista, o rosto cheio de espanto. Um grito rouco, desesperado, de animal mesmo, sai de sua garganta magra.Volta a sentar ao lado do filho. Descansa sua cabeça naquele corpinho sem vida. Daquela posição olha a multidão. Seu olho vai ficando caído até ficar totalmente fechado. Brota uma pequena lágrima. É a lágrima de João Filismundo, finalmente liberto de sua promessa!
FIM.
Miquito Mendes!
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