quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O Dono daquele Armazém de Secos e Molhados !!!





Numa cidadezinha do interior, lá pelas idas de Além Paraíba com Minas Gerais , metade da cidade pertencia ao Estado de Minas e outra ao Rio de janeiro, uma rua era a fronteira destes dois estados.
Sr. Antonio, o proprietário, era torcedor fanático do Fluminense, ai de quem falasse mal do seu time. Incrível, ele aproximava dos 97 anos , e sua fama tanto de comerciante como homem de palavra e outras razões ganharam fama na região. Juntamente com ele trabalhava seu filho Juquinha de 73 anos, dois netos e um bisneto. Ali vendia na caderneta pra pagar todo final do mês.
O armazém chamava atenção de quem passava ali pela primeira vez, com um visual interessante e intrigante. Para a turma do Armazém tornou-se rotina verem turistas fotografando o armazém, inúmeras vezes estes chegavam a pedir para tirarem fotografias com os balconistas.
Constava num círculo na parede do armazém a data de sua construção: 1891, além das duas portas de madeira na entrada, madeira de lei, jacarandá.
Dentro do armazém viam-se lingüiças penduradas num pau de guatambu, ovos caipira, queijo minas , parmezon, manteiga caseira vendida a quilo, banha de porco dentro daquelas latas que eram usadas para armazenar querosene e até chouriços com um aviso: Churisso fresquinho.
O Armazém de Secos e Molhados estava espremido: de um lado um hotel de 5 estrelas- talvez uma das razões de tantos turistas irem lá fotografar- de outro lado, um edifício de 11 andares. Dá pra imaginar? ...pois era assim a situação deste armazém. E, para espanto dos estranhos que por lá passavam, menos de 200 metros do armazém um hipermercado que vendia de sabonete a carros , na mesma rua.
Logo quando você entrava no armazém, do lado direito vários sacos de batata nos sacos de estopa, servia de banco para os fregueses ou conhecidos que lá batiam o ponto todos os dias, como o Sr. Dunga, barbeiro há mais de 50 anos na cidade.
No forro havia de tudo pendurado. Bacias, penicos de plástico e de louças, até bateias para quem quisesse aventurar achar ouro naqueles rios, vassouras tanto as industriais como as feita em casa de sapê.
Em cima do balcão já meio carunchado em algum ponto, uma balança de dois pratos, com seus respectivos pesos encaixados numa pranchinha. Vendia arroz, feijão, milho, canjiquinha, açúcar tudo a granel. Havia uma repartição para cada produto, era só levar a pá e jogar na balança, além do café moído na hora.

Sr. Antonio tinha uma clientela tradicional. Ele era tão caprichoso com seus clientes, que quando vendia ovos, seu bisneto enrolava paciente cada um, no papel cinza em cima do balcão. Todo cuidado era pouco e a clientela fazia parte da sua vida, em certos aspectos.
Era normal gente chegar ao armazém que não ia comprar naquele momento, ia tão somente pra conversar com o Sr. Antonio. Conversa pessoal, quando acontecia logo eles entravam lá para os fundos. Segundo testemunhas, dias houve que o Sr. Antonio não atendia no balcão por falta de tempo, devido a estas prosas em segredos, mas todo mundo sabia o que estava acontecendo , tanto os parentes como os próprios fregueses que por coincidência lá se encontravam. Todos testemunhavam, quando o Sr. Antonio aparecia com a pessoa lá de dentro, ao se despedirem, eles beijavam sua mão como agradecimento.
Desta forma seguia a vida de quase todos naquela meia cidade, nem grande, nem pequena, nem tão populosa, tirando os feriados e dias-santos quando a cidade enchia de turistas.
Sr. Antonio já havia percebido um jovem silencioso, há mais de duas horas sentado num saco de feijão, lá no canto do armazém. Segundo sua observação ele não devia passar dos 25 anos e presa em sua mão uma pasta estilo James Bond. Sr. Antonio de vez em quando, pelo rabo do olho, examinava-o discretamente, viu que ele tinha um olhar cheio de vivacidade e ao mesmo tempo carregado de sofrimento ou tristeza. Seu rosto curtido pelo sol, usava roupa extremamente simples. Chegou até o estranho,
- O Sr. já foi atendido?
- Não senhor!
- Juquinha- gritou- venha atender o nosso amigo.
- Sr. Antonio, preciso ter uma particularidade e só pode ser com o senhor,
- Do que se trata?
Aquele olhar bondoso e astuto percorreu o estranho num relampejo de segundos e viu umas marcas na face esquerda do seu rosto. Parecia uma teia de aranha de tantos riscos. Tiro não foi, punhalada? Pode ter sido, mas fisgada de punhal deixa a pele com marcas diferentes. O estranho percebeu também a examinação feita pelo Sr. Antonio, e abaixando a cabeça permaneceu calado. Passaram alguns segundos- tudo acontecia muito rápido- O jovem levantou a cabeça e encarou , seu olhar transmitia ódio e incompreensão. Seu olhar foi tão carregado em cima do homem, que o Sr. Antonio num piscar de olho procurou qualquer coisa que pudesse se defender caso fosse atacado. Mais um tempo passou, coisa de menos de um minuto, aquele rosto agressivo e pálido voltou a ficar sereno. Sr. Antonio se recompôs e tomou a iniciativa de continuar a prosa.
- Qual sua graça?
- Betofaçêro!
- Beto...o quê?
Sr. Antonio passou a palma da mão no queixo comichando a barba rala e branquinha.
- Beto...do quê?
- Só Betofaçêro, sou órfão de nascença tanto de pai como de mãe e de documentos.
- Só um nome?... Beto o quê mesmo?
- Betofaçêro, Sr. Antonio, desde que me conheço por gente sou chamado e conhecido por este nome.
Sr. Antonio ameaçou dar de ombros.
- Qual particularidade quer me dizer?
- Pode ser num lugar reservado?
- Poder pode, mas antes quero saber, você trabalha em Banco?
- Não senhor !
- É vendedor de seguros?
- Não senhor !
- É vendedor de loteria?
- Não senhor !
- É agiota?
- Não senhor !
- Tá querendo dinheiro emprestado?
- Não senhor !
O homem do armazém ficou arquitetando na cabeça, o que seria que aquele estranho estava arapucando em cima dele?
- É vendedor dessas mentiras de ser sorteado e ganhar uma casa com carro?
- Não senhor !
- É vendedor do Baú da Felicidade?
- Não senhor !
- É rolista?
- Não senhor !
- Tem demanda com a polícia?
- Ter eu não tenho, cá pra nós dois , tenho lá minhas contrariedades contra eles !
- Foi preso?
- Não senhor !
- Agora só falta me dizer que é comprador de cavalo velho pra fazer salsicha !...e deu àquela risada gostosa.
O jovem permaneceu calado olhando bem nos olhos dele.
- Bem vou acreditar no que você respondeu, vamos entrando, vamos lá nos fundos.
Este era um depósito e para todos os lados estavam empilhados sacos de feijão, de açúcar cristal e pequenos sacos com açúcar mascavo, no outro lado, em cima de umas tábuas, a sacaria de sal.
Sr. Antonio ligou um pequeno ventilador, pequeno mesmo não mais que 15 centímetros de diâmetro, com motor de liquidificador, sinal de que ali onde sentaram, devia ser lugar de conversa reservada. Frente à frente, separados por uma distância de quase 1 metro,
- Pode falar , Sr. Beto...sempre esqueço, Beto o quê mesmo?
- B-e-t-o-f-a-ç-ê-ro...
- Ah, agora guardei seu nome, Betofaçêro? Pode falar, sou todo ouvido.
- Sou da cidade de Campos, no norte fluminense, onde nasci e fui criado, as notícias que chegaram por lá, dizem que o senhor é benzedor e milagreiro, por esta razão me apresentei à sua vista e presença com muita fé de ser atendido nas querências que a vida me fez passar.
- Benzedor sou mesmo, herdei essa benção do meu pai, que herdou do dele, mas há um engano aí, sou benzedor mas milagreiro não. Milagre quem faz é Deus !- e fez o nome do pai-
- Mas do que se trata a particularidade?
- São duas particularidades, Sr. Antonio !
- Vamos começar com a primeira !
O jovem desabotoou àquela camisa simples, com remendos embora bem feitos, virou de costas para o benzedor e permaneceu naquela posição de cabeça baixa.
- Virgem santíssima milagrosa, quem te fez isso meu filho?
Betofaçêro voltou a ficar de frente .
- Lá em Campos eu trabalhava como cortador de cana desde criancinha, dizem que comecei a prender a profissão com menos de 4 anos de idade, a lembrança é meio devagar, mas lembro que quando chegava em casa, casa da minha madrinha, minhas mãos estavam com bolhas de sangue.
- Mas o que isso tem a ver com suas costas?
- Acontece quê, Sr. Antonio, desde menininho que minha madrinha pegou pra me criar. Ela trabalhava para o mesmo patrão que o meu. Quando eu terminava meu serviço ia lá pra cozinha e ficava vendo ou ajudando ela fazer as quitandas da casa, limpava o que fosse preciso, isso durante muitos anos. O patrão tem uma filha chamada Matilde, praticamente crescemos juntos, e neste crescer juntos, ficamos apaixonados .
Betofaçêro começou a vestir lentamente a camisa. Antes, o benzedor passou as duas mãos naquelas cicatrizes, o jovem deu um pulo parecendo um animal ferido.
- Senta, senta menino...Vamos logo ao assunto e diga logo,sem meias palavras, o que aconteceu nas suas costas.
- O destino da gente, Sr. Antonio, a nossa sina, a gente não manda, acontece e pronto, a minha Matilde....
- Que Matilde? Interrompeu o benzedor.
- A Matilde , disse ao senhor, que crescemos juntos e com ordem ou sem ordem do patrão a gente ia casar.
- Chegaram a casar?
- Não deu tempo.....
E Betofaçêro começou a contar sua história, quando chegava bem tarde da noite, ele imitava o som de um passarinho, perto da casa do patrão, logo aparecia Matilde, ele ficava escondido atrás de uma árvore, saiam correndo e iam para o meio do canavial. Foi assim um bom tempo. Rolavam no chão abraçados e beijando, a saia de Matilde subia quase até o umbigo, Betofaçêro alisava ela, àquela pele suave de suas pernas . Por muitas noites com chuva ou sem, a gente se encontrava.
Betofaçêro terminou de abotoar a camisa, e suava igual um condenado. Sr. Antonio gritou e pediu pra trazerem um copo d’água.
- Numa sexta feira, estava almoçando com a peãozada, quando dois capangas me laçaram na traição, e me levaram arrastados com os cavalos deles correndo, galopando, até a presença do patrão. Os dois apearam do cavalo e disseram:
- Olha o traste, Patrão !
- Ele abaixou, puxou meus cabelos e disse me encarando: Sujeitinho atrevido, acha que minha filha é pra você? ...um homem que foi achado quando menino debaixo da chuva, quem você pensa que é? Amarra ele lá !
Betofaçêro ficou um tempo calado, mudo.
- Fui amarado num tronco, o patrão pegou seu chicote, e começou a chicotear minhas costas, eu desmaiava eles jogavam água na minha cara e água salgada nas costas. Antes de ficar sem sentido de vez, vi a Matilde falando com o pai dela, mas estava tudo embaçado, não enxergava direito, o sangue atrapalhava, mas uma coisa eu vi direito, ele deu um murro no rosto dela , ela caiu e rolou batendo a cabeça numa pedra. Dali em diante acordei na casa da minha Madrinha.
- Santo Deus, homem !
- Minha Madrinha antes de ser despedida cheia de humilhação, viu pela greta da porta, onde a Matilde estava deitada e sendo examinada pelo doutor, ele dizia para o patrão: - A criança está morta com o tombo que ela levou.
- Graças a Deus, doutor, imagina só, minha filha ter um filho bastardo, Deus sabe o que faz.
O Benzedor percebeu direitinho, dependendo da posição que Betofaçêro ficasse, ou andasse,ele parecia meio corcunda.
- Portanto, Sr. Antonio, queria que o senhor fizesse a benzeção nas minhas costas, elas doem tanto que parece um peso que carrego, dia e noite sem parar, só posso dormir de lado, e quando a dor resolve vir mesmo, com vontade, até penso que o diabo está dentro do meu corpo. Mesmo assim faço uns picadinhos daqui e dali, pra ganhar um dinheirinho, mas quando vem a dor, não consigo ir trabalhar, aí sou despedido.
Betofaçêro abriu a pasta, e tirou de lá um montinho de dinheiro enrolado numa borrachinha e entregou ao benzedor:
- Não, não, eu não cobro , nunca cobrei em toda minha vida pra benzer ninguém, guarda seu dinheiro.
- E a segunda particularidade...
- Calma, calma, a segunda fica pra depois, vamos devagar com o andor que o santo é de barro.
Foram para um quartinho muito bem limpo, e lá, foi feita a benzeção, durou menos que 30 minutos.
- Daqui a 10 dias, nem um dia a mais ou a menos, às 5 horas da tarde em ponto esteja aqui comigo.
O benzedor acompanhou até a porta , fazia questão de ir até a saída do armazém com todos os que benziam. E lá, no meio das pessoas, Betofaçêro, meio corcunda desapareceu das vistas do Sr. Antonio.
Os dias foram passando, Betofaçêro havia alugado um quartinho numa pensão, perto da rodoviária. À noite ninguém conseguia dormir, eram vozes de mulheres e homens bêbados.
No banheiro coletivo, havia um espelho pequeno e trincado preso à parede. Betofaçêro olhava a todo momento sua face e parte das suas costas. Tudo igual.
Naquela noite, ele sentou-se à beira da cama, e os pensamentos o levaram para o canavial. Sua Matilde com aqueles cabelos compridos, loiros, voavam desalinhados acompanhando o vento. Aquela noite, fora uma noite diferente das outras. Rolaram como sempre faziam naquele chão com brotos de cana ainda pequeninos. Sem perceberem ficaram olhando um para o outro silenciosamente. Matilde levantou-se, ficando em pé olhando ele deitado . Daquela posição ele foi vendo àquelas roupas sendo lentamente tiradas até ela ficar totalmente nua. Ela deitou-se em cima dele e o ajudou também a ficar nu. Suas peles se tocaram como nunca havia acontecido antes. Betofaçêro sentiu aqueles seios pontudinhos apertando seu corpo. Se abraçaram loucamente, perderam a noção do perigo, aqueles gemidos longos ecoava na noite malandra e também perigosa.
Betofaçêro voltou a realidade ali naquele quartinho de pensão deu um grito que mais parecia um uivo, chutou a cama, quebrou a cadeira que nem mais cadeira era de tão torta. Esmurrou a parede, chutou com toda força a porta. E caiu em prantos, dormindo ali mesmo, deitado naquele piso frio do quarto.
No décimo dia, bem antes das 5 horas da tarde, Betofaçêro chegou no Armazém. As duas portas estavam fechadas, ficou desesperado. Batia com o punho cerrado e batia naquelas portas, gritava o nome do Sr. Antonio, mas que nada, tudo silencioso lá dentro. Um carro parou, escrito taxi.

- Ô moço, não leu o aviso? Veja lá o aviso....
Num papel pequeno estava escrito assim: “ fechado por motivo de luto”. Ele correu até o motorista do taxi e perguntou:
- Na minha razão de entendimento não sei porque está fechado, tenho um trato de estar aqui as 5 horas com o Sr. Antonio.
- Moço, o compadre Antonio morreu, vai ser sepultado daqui a pouco.
Betofaçêro começou a chorar e saiu andando. O bondoso motorista do taxi o alcançou e perguntou:
- Então você conhecia o meu compadre? Estou indo para o cemitério , quer carona?
O homem do taxi estendeu a mão e disse:
- Muito prazer, meu nome é Curruila, é apelido, mas todos me conhecem por Curruila.
Ao chegarem, o caixão estava acabando de ser baixado por duas cordas, com quatro homens abaixando devagarinho. Aquela multidão de pessoas espremida uma na outra acompanhava a cerimônia. Quando todos foram embora, Betofaçêro sozinho, ajoelhou-se na beirada da cova, ficando silencioso. Não rezou, não pensou em nada, mesmo porque ele havia desaprendido a rezar,desde quando sua madrinha veio a falecer. Por mais de um bom tempo, ele ficou silencioso, mudo.
- Pois é, Sr. Antonio, a vida prega cada peça na gente, o Sr. era minha salvação, mas agora vou morrer aleijado mesmo.
Betofaçêro deu um longo suspiro, lágrimas caíram naquela terra fofa da cova.
- Antes de ir embora, vou lhe dizer qual era a segunda particularidade que queria lhe dizer. Eu queria que o senhor pudesse arranjar ou vender uma boa quantidade de tempo pra mim e pra Matilde, pra gente envelhecer mais devagar, até que o pai dela venha a falecer, e nós dois podermos passar o resto da nossa vida juntos, e quem sabe até construir uma família?
Betofaçêro entrou no quarto da pensão, com uma sensação de alivio que há muito anos não sentia. Antes de ir embora sem rumo pela vida, entrou no banheiro e deu de frente com aquele espelho trincado. Levou um susto, desapareceu àquela cicatriz medonha da sua face. Olhou novamente, e mais outra, e mais outra. Passou sua mão na face não sentiu àquelas marcas. Arrancou a camisa duma vez, e tentou olhar suas costas, de tão desesperado ficou, correu gritando chamando a dona da pensão e foi logo perguntando pra ela:
- Olha aqui nas minhas costas, tem alguma coisa, alguma marca, tem? Tem?
- Tem nada moço, tá maluco? Suas costas tem a pele lisa igual bunda de neném.

Miquito Mendes !!!

Nenhum comentário:

Postar um comentário