quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Um diálogo imaginário com Marcia Cabrita !!!




















O texto abaixo foi inspirado no artigo que Marcia Cabrita escreveu na Revista O Globo, dia 30 de janeiro de 2011. No artigo cujo nome é " Viva o luto" ela narra suas experiências durante a fase do seu câncer !


- Pô, Marcia, tô ferradinho da silva...
- Porquê esta cara, mermão?
- Ora, Marcia, não vê que estou prontinho pra ser, também, figurante num filme sobre a Àfrica?...figurante na parte que toca a magreza...
- E daí?
- Daí que ando sujando as calças direto e reto. Pô, a merda do câncer detonou meu pulmão, puta merda, Marcia, e pra complementar fiquei broxa...pô,


Marcia Cabrita encontrou por acaso com seu amigo, -fazia algum tempo que não o via- naquele hospital. Ela já recuperada, ele...bem...
Pegaram um taxi juntos e racharam a corrida. No calçadão da Av. Atlântica retornaram a conversa.
- E o viagra, mermão?
- Só se eu tomar uns 100 comprimidos de uma vez...
Marcia deu àquela risada sem querer querendo. Acabou que no final os dois riram mesmo.
- Ontem, assisti aquele filme Antes de Partir com os atores Jack Nilcholson e Morgan Freeman, os dois sofrem de câncer e resolvem dar uma volta ao mundo no jatinho do Jack....
Uma pausa.
Ele acendeu um cigarro. Márcia fez uma expressão de nojo, abanou seu rosto com as mãos, a fumaça foi miradinha pelo vento em seus olhos, tossiu, quase engasgou.
- Deixa de frescura, Marcia, pô, quer poluição maior do que estes carros passando aqui em baixo do nosso nariz?
- Tá comparando alho com bugalho, mermão !!!
O cigarro caiu da sua boca. Cruzou as pernas, urinou nas calças. Marcia percebeu mas ficou em silêncio.
Num repente ficou em pé, os pingos da urina desciam pernas abaixo e pingava na calçada. Levantou os braços e começou a gritar. Marcia continuava sentada com a cabeça erguida olhando o cara totalmente fora de si. Continuou gritando. E mais um grito. Sentou-se. Pôs ambas as mãos em cima da quase circunferência que mostrava a marca da urinada na calça.
Ficaram em silêncio. Os carros com àquela buzina infernal, gente no vai e vém sem parar, uns quase atropelando outros, e outros fazendo seu Cooper. Algumas pessoas olhavam os dois apenas por olhar. De vez em quando, ele virava seu rosto e encarava Márcia nos olhos. Ela correspondia com o olhar.
- E sobre o filme que você estava dizendo?...
- Deixa pra lá...é uma puta sacanagem isso sim...Marcia?... você acha que estes laboratórios sacaneiam a gente?
- Como assim?
- Porraaaa...hoje tem cura pra quase tudo na vida, é o novo milênio, esta porraaa de câncer, só de falar este nome já dá caganeira na gente...qual razão, me explica, Marcia, destes laboratórios não terem um remédio ...tipo foi à penicilina para a tuberculose? Neguinho deve pensar só em faturar?
- Lógico, mermão !... primeiro os lucros, mas escuta só, eu entrei nesta fria, quer dizer , este câncer entrou em mim, tive sorte? Sei lá, cara, mas de uma coisa eu sei muito bem, me borrei toda....Vamos andar um pouco?
Ele passou sua mão em volta do braço dela, com os passos um pouco arrastados...foram caminhando. Em certa altura ele parou de andar , e ficou olhando o mar. Assim permaneceram ambos por um tempo. Um silêncio no meio daquela barulhada toda, silêncio de um para com outro.
Retornaram a caminhada.
- E aí, cara?
- Seguinte, Marcia, esta semana vou começar a usar boné, ou um chapéu tipo o do Tom Jobim, qual sua opinião? .....deixa pra lá, pergunta idiota.
- Idiota nada, cara. De uma coisa nós dois sabemos, você vai ter que usar um ou o outro, ou...nenhum deles, é decisão sua....
Ele passou sua mão pelos cabelos ralos e àquela mão enrugada ficou naquele vai e vém.
- Vamos sentar?...estou cansado e com sede.
Marcia foi ao quiosque e trouxe uma garrafa de água mineral, encheu o copo, suas mãos estavam tão trêmulas que derrubou toda a água. Marcia levou o copo em sua boca, e lentamente ele foi bebendo.
Retirou um cigarro do bolso da camisa. Não chegou acender, começou a chorar.
- Porraaaa louca este mundo, Marcia, podes crer. Olha só o meu estado. Todo mijado, um medo do cão...você tem noção da minha situação...
- Porraaaaa louca mesmo, mermão. Este mundo não passa de uma porraaa louca....quer saber? Só quem é anormal não acha este mundo uma porraaa louca. Quer saber mais? Qual é o parâmetro pra saber se isso ou aquilo é normal ou anormal? Sinceramente, cara, não sei dizer... é uma merda.
- Pô, Marcia, e os meus planos? ...vão por água abaixo assim sem mais nem menos?...que angústia maquiavélica. Meus fantasmas viraram monstros, estão incontroláveis dentro deste corpo.
Uma pausa. Ele olhou seus sapatos, olhou o nada ou olhou qualquer detalhe.
- Às vezes, Marcia, com toda esta fraqueza e delírio, imagino o seguinte: eu numa arena de tourada, mirando com uma espada aquele touro em forma de monstro que é o meu câncer, eu enfiando a espada até o cabo e matando este maldito câncer.
Marcia sabia com perfeita exatidão o estado de angústia dele, as alternâncias de situações, ora com esperanças, ora as desesperanças, do cansaço, da fraqueza. Como num flash back, foi revivendo sua vida.
- Marcia, acredita que vieram com aquele papo furado pra eu ler livro de “ auto-ajuda”? Mandei eles pra puta que pariu, pô, querem faturar em cima do meu câncer... o pior...pode rir se quiser, eu acabei comprando....
- Fez bem....toda tentativa è válida, ora bolas...
Ele olhou demoradamente pra ela, com uma expressão de horror, pra ser sincero mesmo, uma expressão horrorosa.
Subiu a calça da perna direita e apontou o dedo:
- O médico disse que peguei sarna, nada a ver com meu câncer, olha as feridinhas, são de tanto coçar, é mole?
- Mermão? ...você está com praga de sogra...
- Vamu fumar um cigarrinho?
- Tá maluco, cara?
- Se você pensar bem, até existe uma lógica caso eu esteja maluco ou ficando maluco....creio...eu creio que ainda não estou, sei muito bem o que está acontecendo comigo, quer ver, Marcia?
- Ver o quê?
- Canta comigo , As Velas do Mucuripe....lembra?
- Pode puxar....
Ele imitou um violão nos braços, fechou os olhos. Mexeu os pés raspando-os na calçada.
- Pronto, Marcia?


- “ As velas do Mucuripe,
Vão sair para pescar,
Vou levar as minhas mágoas
Pra águas fundas do mar,
Hoje à noite enamorar,
Sem ter medo da saudade,
Sem vontade de casar”.
O dueto chamou atenção. Os dois cantavam com os olhos fechados, botaram pra fora toda a delicadeza da letra e música. Ele fazendo posições musicais imaginárias no violão imaginário. Em determinada parte da música ele começou a cantar sozinho, letra , música ,solando o violão, tudo misturado com lágrimas.
- “ Calça nova de riscado,
Paletó de linho branco
Que até o mês passado, lá no campo,
Inda era flor”....
Não conseguiu terminar, cruzou as mãos em cima daquela circunferência manchada , quase seca, e não parava de chorar.

Miquito Mendes !!!

2 comentários:

  1. Cara, eu li lá no Blog dela. Achei a situação de uma simplicidade enorme. Um encontro emocionante mesmo... Tenho certeza de que ela vai gostar! Parabéns, o texto é tocante e leve ao mesmo tempo, e ainda se tratando de um diálogo sobre câncer... Um beijo!

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  2. Obrigado, Monique, pelas palavras. Abraços !!!

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